Um mundo sem geladeira (e sem cerveja gelada)
Peço perdão pela obviedade ululante do título deste texto. Mas pensa só: aqui no Brasil, se quiséssemos beber cerveja numa temperatura minimamente aceitável, sem refrigeração artificial, precisaríamos ir ao topo do pico das Agulhas Negras ou a São Joaquim (SC) no inverno.
Sem condição.
Escrevo sobre o tema por causa do ótimo texto de Matheus Ferreira sobre o livro “Frostbite”, da americana Nicola Twilley. Nele, a autora conta a história da geladeira e de seus efeitos colaterais.
Um deles é o surgimento de variedades de frutas e legumes que, para durar meses preservados na cadeia fria, tornaram-se quase insípidos.
A própria autora diz que não quer “desinventar” a geladeira nem estimular ninguém a viver sem ela. Ainda assim, acho oportuno destacar que as vantagens de viver num mundo com refrigeração artificial superam imensamente os malefícios colaterais da tecnologia.
A começar pela própria cerveja. Esqueçamos a temperatura de consumo. Falemos da temperatura de produção.
Para fazer uma lager –popularmente chamada de pilsen–, é necessária uma fermentação controlada de 9 ºC a 15 ºC. No calor do Brasil, sem refrigeração, os fermentos em frenesi produzem uma cacetada de compostos indesejáveis para o perfil aromático e a própria salubridade da bebida.
Mas, digamos que algum lugar de clima ameno sei lá, no Rio Grande do Sul, conseguisse produzir lager no inverno. A cerveja precisaria ser consumida localmente, pois a pasteurização requer um resfriamento rápido depois do aquecimento que mata a bicharada.
O transporte de alimentos seria inviável, dependendo da distância e do tipo de comida.
Lembro que meu pai falava do tempo em que não havia muitas geladeiras por aí, principalmente nas residências.
Ele morava no interior. A carne que consumia era quase só charque, porco salgado e linguiça defumada. Peixes e frutos do mar frescos ele só foi conhecer mais velho: o que chegava à cidade dele era bacalhau e camarão seco.
Sem refrigeração, precisaríamos nos contentar com a comida produzida muito perto. Sushi em São Paulo, sem gelo? Complicado.
Antes que a militância do eat local comemore, um lembrete: antes da geladeira, os matadouros ficavam dentro das cidades (o de São Paulo era na Vila Mariana). O abate era feito em condições lamentáveis de higiene, e a carne, exposta ao calor se decompunha rapidamente.
Comida estragada não iria faltar no mundo sem geladeira, e com ela viram as doenças e as mortes.
Falando em doença e morte, a refrigeração é fundamental para o armazenamento de várias medicações e vacinas.
Ou seja, o mundo sem geladeira seria um mundo pestilento. Como já foi antes, mas tem gente que romantiza o passado.
Melhor comer um tomate sem graça de vez em quando.
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