NotíciasPolítica

Soldados negros esquecidos na história foram base da Coluna Prestes há 100 anos

No dia 28 de outubro de 1924, soldados do 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo (RS), liderados pelo capitão Luiz Carlos Prestes (1898-1990), iniciaram um movimento revolucionário que depois se juntaria a tropas de outros estados e formaria a Coluna Prestes.

Foi a maior marcha militar já realizada no país, percorrendo em quase três anos 25 mil km, com o objetivo de derrubar o governo de Artur Bernardes e o regime político oligárquico vigente.

No centenário desse movimento rebelde, o depoimento inédito de um ex-combatente, guardado há 29 anos pelo filho do líder revolucionário, Luiz Carlos Prestes Filho, joga luzes sobre um aspecto pouco conhecido e estudado do conflito: a presença de negros nas fileiras da marcha.

No testemunho, gravado em 28 de fevereiro de 1995, Hermogênio Dias Messa, aos 94 anos, contou como funcionava o trabalho para conseguir alimentos para a tropa, ao longo da caminhada.

“Nós éramos muitos negros na coluna”, disse o ex-combatente. “Nós, negrada, cantávamos indo no serviço de entrar numa fazenda. Entrava numa fazenda e explicava. Não ficavam contra porque sabiam que a Coluna Prestes não era a coluna do Lampião. Não era roubo, era explicado sobre a revolução.”

Quando Luiz Carlos Prestes assumiu o 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, em 1923, os soldados eram tratados da maneira que mais tarde se convencionou chamar de “análoga à escravidão”.

As jornadas eram exaustivas. A alimentação, imprópria. Os cerca de 200 soldados, entre eles Hermogênio Dias Messa, estavam acampados em condições degradantes, nas imediações de Santo Ângelo, para a construção de uma ponte de ferro.

Em depoimento à sua filha, Anita Leocádia Prestes, depois utilizado no livro “A Coluna Prestes”, o líder revolucionário falou sobre as condições em que encontrou o batalhão: “Os soldados estavam num alojamento, um barracão de palha, de chão de barro, cama de vara; terrivelmente mal alojados”.

“Eu, estando conspirando, resolvi dar instrução aos soldados.”

Além da instrução militar, tratou de ensinar a ler e escrever. “Na alfabetização, eu empreguei o seguinte: cada soldado analfabeto entreguei a um que sabia ler e escrever”, lembrou. “Em três meses, estavam todos já assinando o nome.”

Para melhorar a comida, Prestes contratou um cozinheiro e um padeiro. Foi o suficiente para ganhar a confiança da tropa.

Esses soldados que formaram a base da Coluna Prestes pertenciam a uma classe social que aumentou consideravelmente naquela região, na virada do século 19 para o 20.

Segundo os censos demográficos de 1872 e 1920, nesse período a população que vivia na área formada pelos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo saltou de 34.822 habitantes para 284.777. O aumento se deu, sobretudo, por uma multidão de homens pobres que saíram da fronteira sul, atraídos pela notícia da abundância da erva-mate.

A agricultura, entretanto, não conseguiu absorver aquela grande quantidade de mão de obra, e muitos encontraram trabalho na construção das ferrovias, que chegavam ao Rio Grande do Sul.

Segundo pesquisa da cientista social Maria Catarina Zanini, da Universidade Federal de Santa Maria (RS), a instalação da malha ferroviária se transformou em possibilidade de emprego para a população pobre, principalmente a oriunda da abolição da escravidão, em 1888.

“O que nossa pesquisa constatou é que os negros tendiam a ocupar as posições mais subalternas (e braçais) do trabalho ferroviário”, disse.

De fato, em várias cidades gaúchas por onde avançaram as ferrovias, foi constatada a chegada da população negra. O 1º Batalhão Ferroviário, que foi liderado por Prestes, era uma unidade militar itinerante.

Zilda Marques da Silva Nuncio contou que uma leva de migrantes negros, entre eles seu pai, chegou em 1943 a Bento Gonçalves, na serra gaúcha, junto com o 1º Batalhão Ferroviário, com a missão de construir uma nova malha ferroviária.

“Meu pai era detonador de túneis, e, conforme os trilhos iam avançando, a gente ia mudando”, disse.

Procurado para falar sobre as condições precárias a que eram submetidos os militares de baixa patente na construção de ferrovias, o Centro de Comunicação Social do Exército disse que os acontecimentos de 1924 “representam um fato histórico, enquadrado em uma conjuntura de cem anos atrás”.

Passados cem anos do início da campanha que culminou na Coluna Prestes, restam poucos cenários alusivos ao conflito na região onde tudo começou. Em Santo Ângelo, permanece a ponte de ferro construída pelo 1º Batalhão Ferroviário, sob a supervisão de Prestes, entre os anos de 1923 e 1924. Fica no distrito de Comandaí e está desativada.

Em São Luíz Gonzaga, cidade vizinha, para onde as tropas da coluna se dirigiram no começo dos combates, ainda está de pé uma gruta com a imagem de Nossa Senhora de Lourdes.

Ela foi erguida na parte mais alta da cidade para pagar uma promessa das mulheres católicas do município, que temiam pelo derramamento de sangue durante o conflito. Como não houve mortes naquele lugar, elas construíram a gruta em 1926 e até hoje devotos vão ao local.

No mais, existem homenagens mais recentes ao episódio. Como o Memorial da Coluna Prestes, instalado na antiga estação ferroviária de Santo Ângelo, em 1996. Naquele mesmo ano de 1996, foi erguido na entrada da cidade um monumento projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com 15 metros de altura, em referência à marcha.

Em nenhuma dessas homenagens há referência ao protagonismo negro na Coluna Prestes. Sobre esse apagamento histórico tanto ali como na própria historiografia, Carlos Quadros, doutor em história econômica pela USP, disse que somente nas últimas décadas essa falha vem sendo corrigida.

“Com relação à presença negra nos quadros do tenentismo em geral, e na Coluna Prestes em particular, é importante destacar o silêncio de certos registros mais tradicionais do fenômeno”, disse. “A sua representação nas letras da imprensa da época, por exemplo, é praticamente nula.”

Orgulhoso em ser um dos negros da Coluna Prestes, Hermogênio Dias Messa guardou até seus últimos dias, como lembrou sua filha, Luíza Soares Messa, o lenço vermelho que costumava usar no pescoço durante a marcha.

Era uma referência à Revolução Federalista, ocorrida no sul do Brasil no final do século 19. Nela, os chamados “maragatos” –tropa que usava lenços vermelhos no pescoço e era formada principalmente por negros, pardos e caboclos– constituíam as milícias dos fazendeiros que lutavam contra os soldados do governo.

“A maior alegria do meu pai foi no dia em que o Prestes voltou a Santo Ângelo para comemorar os 60 anos da coluna, em 1984”, contou Luíza. “Ele colocou o lenço vermelho para aparecer na foto junto aos veteranos da marcha.”

source

Compartilhe:
WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com