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O real não subiu a rampa

Há 30 anos, o Brasil tem moeda, graças ao Plano Real, que nos libertou da “cracolândia monetária” (apud Gustavo Franco). A Argentina tem um pedaço de papel pintado –e, por lá, despreza-se tanto a moeda que seu presidente ultraliberal almeja criar uma “concorrência entre moedas”. Celebrou-se o 30º aniversário do real num evento na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Por que Lula não convidou os pais, os patronos e os guardiões do real para subirem a rampa e celebrarem no Planalto?

Batizou-se “soberano” a primeira moeda de ouro cunhada na Inglaterra em 1489. “Só aquele que tem o poder de fazer lei pode regular a cunhagem”, ensinou Jean Bodin, no século 16. Moeda é um dos pilares da soberania nacional. O real é um patrimônio do Brasil, como o Pão de Açúcar e o Pantanal (que arde em chamas…). Mas, por algum motivo, o governo ignorou seu aniversário.

O real nasceu em 30 de junho de 1994, quando concluiu-se a mágica genial de metamorfose da URV em moeda. Pérsio, Lara, Bacha, Franco, Malan, Ricupero e, claro, FHC e Itamar fizeram o parto. A nova moeda, porém, só foi batizada em 1999, no meio da turbulência cambial, por Armínio, que desenhou a trindade: câmbio flutuante, metas de inflação, equilíbrio fiscal. A maioridade veio ainda depois –e pelas mãos de Lula.

O PT votou contra o Plano Real. Qualificou-o como golpe contra a economia popular, rendição ao império das finanças, submissão ao imperialismo. Contudo, na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, Lula peregrinou à Canossa real, prometendo conservar a trindade. Cumpriu, com louvor, entre 2003 e 2004: no início de seu primeiro mandato, produziu os superávits fiscais que conduziram a jovem moeda da adolescência à idade adulta. Por que ele não juntou-se aos pais, patronos e guardiões numa comemoração do patrimônio comum?

Do governo, emanou apenas um sinuoso artigo de Aloizio Mercadante consagrado, no fundo, a ocultar sua profecia original de que o real teria vida curta, um equívoco histórico ditado por obsessão ideológica. Nenhuma pessoa sã solicitaria de Lula uma revisão crítica de sua postura negacionista na hora do parto da nova moeda. Bastaria erguer um brinde. O gesto ajudaria a amainar a polarização política nacional que o presidente jura lamentar, isolando num gueto sombrio os fanáticos bolsonaristas. Por que não o fez?

O Plano Real foi muito mais que um brilhante truque monetário –e, três décadas depois, ainda não se concluiu. Sem a limpeza das cavalariças financeiras, a hiperinflação não seria derrotada. Nos mandatos de FHC, foram saneados os bancos públicos, privatizaram-se estatais, o tão difamado Proer estabilizou o sistema bancário. As crises financeiras na Ásia e na Rússia (1997-98) romperam o cabo de nossa âncora cambial. No lugar dela, baixamos uma âncora fiscal. A flutuação do câmbio foi seguida, em 2000, pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Confiança é o outro nome de moeda. Com a solitária exceção do dólar, uma moeda estável não suporta pilhas crescentes de déficit público. Mas a “cracolândia fiscal” seduz os políticos: o pecado da inflação é logo punido por eleitores tungados, enquanto o gasto perdulário proporciona imediatos triunfos eleitorais. Por esse motivo, a cultura do equilíbrio fiscal não deitou raízes entre nós. Sempre damos um jeito de circundar as leis e as regras que ancoram nossa moeda.

“Gasto é vida”. Foi Dilma quem proclamou, mas Lula já praticava desde o final do primeiro mandato, sob o escudo do ciclo internacional do dinheiro fácil e das commodities caras. O desastre nada lhe ensinou: no terceiro mandato, esquecido, prefere ler os parágrafos complacentes de Mercadante a reproduzir suas iniciativas virtuosas de 2003. Nessa via, sabota –com a interessada colaboração do centrão– o frágil arcabouço de Haddad. É por isso que o real não subiu a rampa.


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