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O aborto deve ser tratado como saúde da mulher

Eu já sofri dois abortos espontâneos. Foram experiências muito difíceis, seguidas de luto e tristeza. São sentimentos que nos acompanham por muito tempo. Felizmente, algum tempo depois, eu fiquei grávida novamente. Meus filhos, uma menina e um menino, têm hoje 20 anos.

Vocês devem estar pensando que este não é um aborto induzido. É verdade. Imagino que o aborto provocado deva ser ainda mais difícil. A dor de decidir entre continuar ou não uma gestação indesejada não deve ser fácil. As razões para isso são variadas: desde a idade, se for muito jovem, por pressão familiar, medo de sofrer represálias da família (como ser expulsa de casa), pela profissão, pela má formação do bebê, estupro, risco de vida da mãe, entre outras. Além disso, os cuidados das crianças recaem majoritariamente sobre as mulheres. Segundo a literatura, a gestação indesejada pode trazer problemas psicológicos, sociais e familiares.

O aborto é um assunto delicado, mas deve ser discutido como uma questão de saúde pública, e o Estado deveria garantir e respeitar os direitos reprodutivos das mulheres. Além do mais, a criminalização do aborto não reduz sua incidência. Mulheres com uma boa condição socioeconômica acabam realizando o aborto em clínicas particulares clandestinas; por outro lado, a mulher de baixa renda recorre ao aborto autoinduzido. Nesse último caso, as mulheres mais vulneráveis podem acabar sofrendo efeitos colaterais graves de abortos malfeitos, o que as leva a procurar o serviço de saúde para tratamento. Ou seja, ainda corremos o risco de mais mulheres perderem a vida ou prejudicarem sua saúde, inclusive a reprodutiva, devido à interrupção malfeita. A literatura ainda mostra que, em muitos casos, essas mulheres são sujeitas a violência obstétrica ou práticas discriminatórias por parte dos funcionários dos centros de saúde, muitas vezes por questões morais ou religiosas.

Em 2019, segundo dados da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde), 5,7% das mulheres com mais de 18 anos entrevistadas reportaram que já sofreram algum tipo de violência sexual. Dessas mulheres, as brancas somavam 4,5% e as negras (pretas e pardas) em torno de 6%. De acordo com o boletim do IPEA “Evidências para políticas públicas” (número 22), dos casos de estupro estimados por ano, em torno de 822.000, somente 8,5% chegam às delegacias e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde, sendo 90% dos casos contra mulheres. Segundo o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), no caso de estupro de menores entre 0 e 9 anos de idade, de 2009 a 2022, foram 84.449 casos, e entre 10 e 14 anos, 101.544 casos, sendo 63% contra crianças pretas e pardas. São dados alarmantes.

A lei brasileira, de 1940, permite o aborto nos casos de risco de vida para a mãe, estupro e anencefalia fetal. Em 2008, segundo dados do DataSUS, foram realizados 209.766 procedimentos relacionados a aborto/curetagem, e em 2023, 145.250. No caso de estupro, esse crime muitas vezes acontece dentro de casa e por pessoas conhecidas da vítima, frequentemente contra crianças e adolescentes. Ademais, em locais mais vulneráveis, o acesso ao sistema de saúde é precário, tornando mais difícil fazer o diagnóstico. Num segundo momento, é necessário decidir-se pelo aborto e executar o procedimento. Infelizmente, muitas vezes, o aborto é realizado com a gestação já em estado avançado. Porém, a lei é clara: quem se encaixa em um dos três casos pode fazer o aborto. Não há limite no número de semanas.

Criminalizar o aborto legal, como previsto pelo projeto de lei 1904/2024, é retirar direitos que já estão em vigor e penalizar majoritariamente mulheres negras e as mais vulneráveis, inclusive crianças e adolescentes que foram abusadas.

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