Turismo

Baco no Jardim do Éden

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Nunca estive num oásis no deserto africano. Só os “conheço” por fotos e fantasias da literatura e do cinema. Mesmo assim, há duas semanas me senti no meio de um deles —só que bem longe da África: era o norte da Argentina.

Guiado por Pablo Rivero, proprietário dos restaurantes portenhos Don Julio e La Preferida de Palermo, mas também sommelier entusiasta dos vinhos argentinos, visitei a província de Salta, e, de sua homônima capital, rumei duzentos quilômetros ao sul para o município de Cafayate, de vinhos tão bons quanto pouco conhecidos aqui.

Salta —aninhada às bordas de montanhas que prenunciam os Andes— é uma importante região vinícola. A capital é uma cidade já de grande porte, uns 750 mil habitantes, e conhecida por uma arquitetura que, resumida em sua praça central, mostra vestígios da história da colonização espanhola até hoje.

Como gastronomia, afaga os visitantes com suas famosas empanadas. Mas tem também experiências contemporâneas como a do restaurante El Baqueano, que no alto de um morro debruçado sobre a paisagem da cidade serve pratos ousados do chef Fernando Rivarola, baseados na opção radical de produtos unicamente locais.

E tem os vinhos —mas aí vale a pena rumar ao sul até Cafayate. A paisagem de altitude montanhosa é impressionante, como vi no vinhedo Alto Río Seco, da vinícola El Porvenir: agreste, pedregosa, empoeirada, com o manto de parreiras rasgado pela erupção de rochas isoladas ou gigantescos cactos semelhantes ao mandacaru brasileiro, com cinco metros de altura e grossa espessura.

Mas, em outro vinhedo da mesma vinícola, Alto los Cuises, a 1.850 metros de altitude, há uma área luxuriante que, tal qual oásis no deserto (segundo a literatura), se aninha numa encosta de onde brota a escassa água da região.

Me lembrou o tal oásis, ou talvez um Jardim do Éden (que, se tivesse existido, seria pelos lados da África mesmo): vinhas vicejam junto a figueiras carregadas de frutos pecaminosos, entre cactos variados (inclusive, além do mandacaru, a palma que temos no nordeste brasileiro), misturados a flores e outros frutos.

Árvores frondosas fornecem a sombra sob a qual provamos excepcionais vinhos nascidos naqueles arrabaldes —como a linha Laborum, com quatro malbecs de solos vizinhos, com personalidades próprias—, obra da proprietária Lucía Romero e do perfeccionista enólogo Paco Puga.

Sem oásis, mas com a paisagem rústica e ainda mais acidentada, deu-se outra visita digna de nota, ao vinhedo Quebrada de San Luís, da vinícola Vallisto. Pancho Lavaque é o proprietário e enólogo responsável por várias linhas de vinhos ousados de Cafayate.

E, neste vinhedo a 1.900 metros de altitude, entre cacos de louças anteriores aos incas, restos de construções pré-colombianas, pedras pontiagudas e solo tratado por ovelhas que pastam mansamente entre as parreiras, nascem alguns dos mais atrevidos.

São confeccionados pela vinícola In(culto), de Lavaque, com outro enólogo visionário, de Mendoza, Matias Michelini, com uvas como malbec, torrontés e criolla de cultura biodinâmica.

Estes “vinhos de paisagem” saem de microparcelas vizinhas, às vezes com diferenças apenas de inclinação em relação ao sol; e ganham o nome (e a foto) de algum detalhe da paisagem daquele cantinho (caso do malbec El Abrazo, vinho de fruta pura, sem madeira, cujo rótulo retrata o parreiral com enormes cactos entrelaçados).

De altitudes impensáveis, com clima rigoroso, solo agreste e paisagens lunares, a mão humana pode retirar grandes vinhos, às vezes mexendo muito pouco, só deixando a natureza se expressar.


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