William Bittar – Jazz não é Samba, Rio não é Nova Iorque. Para quê praça flutuante?
No início do século XIV, muito antes da ocupação predatória da América pelo branco europeu, o povo asteca fundou a capital de seu império, Tenochtitlán, em uma ilha do Lago Texcoco, no Vale do México, a mais de dois mil metros de altitude.
Com o tempo, tornou-se uma cidade densamente povoada, com arquitetura de pedra e barro para construção de seus templos, palácios, pirâmides, edificações para atender diferentes funções.
Estima-se que, pouco antes da chegada do europeu, em 1492, a capital abrigava cerca de 200 mil habitantes que necessitava de alimentação, além de outros serviços que eram oferecidos.
Entre tantas iniciativas que demonstram o alto nível civilizatório do povo asteca, foram implantadas as chinampas, praças flutuantes cultiváveis, ampliando a área urbana com terra altamente produtiva.
Na prática, tratava-se da criação de um cercado de juncos, fincados no solo alagado, possibilitando a formação de ilhas artificiais através do preenchimento da trama vegetal com terra e material orgânico. Essa formação, semelhante às ilhas flutuantes de Uros, no Peru, era ancorada com árvores maiores dispostas em seu entorno, evitando o deslocamento do solo e da própria área criada.
Além de um terreno fértil pela adubação natural, ainda permitia a construção de pequenas moradias para os agricultores, estreitando a relação homem-natureza, adotando princípios básicos de sustentabilidade, sem sequer conhecer conceitos estabelecidos por civilizações posteriores para atenuar suas atitudes predatórias.
Quase sete séculos depois, em 21 de maio de 2021, a cidade considerada o grande ícone dos tempos modernos, a Big Apple desde a década de 1920, New York assistiu à inauguração de um novo ponto turístico: o parque Little Island, espaço público implantado no Pier 55, numa ilha artificial, localizado no Rio Hudson, a oeste de Manhattan.
O conjunto edificado, projetado pelo Heatherwick Studio, está apoiado em 132 tulipas de concreto ancorados no fundo do rio e ligado à ilha principal por uma grande ponte.
A área proporciona belas visadas da área urbana, com mirantes distribuídos entre diferentes espécies da flora, anfiteatro para cerca de 700 espectadores e uma praça central para reunião, descanso e alimentação.
O escritório Carlo Ratii Associati apresentou, em 2016, a proposta para uma praça pública flutuante na lagoa Lake Worth, na Florida, a ser construída com alta tecnologia. A iniciativa integra a proposta de recuperação daquela região.
No último fim de semana a população carioca foi surpreendida com uma declaração da Prefeitura sobre a criação do Parque do Porto, comparado pelo próprio prefeito com o Parque do Flamengo, notável criação de profissionais como Roberto Burle Marx e Affonso Eduardo Reidy, entre outros, surgido por outras demandas, em outro contexto.
A declaração foi acompanhada de uma peça publicitária visualmente atraente, indicando as principais intervenções. A gráfica digital associada à realidade virtual, tudo permite. Tal como uma obra do realismo fantástico de notáveis autores latino-americanos.
No entanto, um projeto complexo e ambicioso como este precisa, mais ainda do que a recente apresentação da intervenção na Estação da Leopoldina, de detalhados estudos em diversas áreas de conhecimento.
O colega arquiteto Sydnei Menezes, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, em entrevista concedida à BandNews FM no dia 20 de maio, considerou que” a apresentação desta iniciativa pode ter sido precipitada.”
O “Parque do Porto”, com suas praças flutuantes, assim como em projetos citados acima, precisa ser amplamente detalhado, incluindo relatórios de impacto ambiental, fluxo viário, infraestrutura, acessibilidade, com esclarecimentos e participação popular. Mais uma vez seria desejável a realização de concursos públicos, assim como para a intervenção na Estação da Leopoldina, o que não aconteceu.
A precipitação no anúncio da proposta, talvez esteja, outra vez, associada à proximidade eleitoral. Assim surgiram algumas outras iniciativas, de vários governantes, que não foram bem-sucedidas ou sequer iniciadas depois do resultado das urnas, não apenas no Rio de Janeiro ou no Brasil.
Em outras ocasiões, governantes patrocinaram monumentos de auto exaltação, como a Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, no século XVIII, “construída sobre sangue e ossos de inocentes”, conforme as Cartas Chilenas. Ou a famosa pirâmide do Louvre, tornando François Miterrand o último faraó do século XX.
A utilização de referências projetuais é algo comum entre profissionais de arquitetura e urbanismo, mas devem ser adaptadas a realidades diversas, econômicas, sociais, culturais.
Experiências aprendidas em Columbia, Harvard ou outras universidades americanas podem ser sopradas nos ouvidos dos governantes por seus auxiliares, mas é necessário discernimento para aplicá-las em seus respectivos contextos.
Afinal, jazz não é samba, cariocas não são astecas e o Rio não é Nova Iorque!